Por Lúcio Flávio Pinto em 26/03/2004
Fonte: Jornal Pessoal
Eike Baptista sempre foi motivo de interesse para a imprensa como o marido ( o filho de Eliezer Baptista da Silva. Eliezer foi (e, em certa medida, deve continuar a ser) um dos homens mais influentes no Brasil a partir da quarta república (iniciada em 1946). Chefiou o ministério de Minas e Energia entre 1962 e 1964, quando o governo João Goulart caiu. Eliezer sobreviveu, incólume, aos expurgos promovidos pelos militares em cima dos derrotados. Não só sobreviveu: fortaleceu-se ainda mais.
Depois de ter sido por duas vezes presidente da Companhia Vale do Rio Doce (ao longo de 10 anos descontínuos), foi representar a empresa na Europa, estabelecendo-se em Bruxelas, a estratégica capital da comunidade. Abriu as portas da expansão da CVRD para a Ásia, uma empreitada que o levou mais de 100 vezes a Tóquio e o estimulou a falar fluentemente o japonês. Dizem ser o ocidental não-residente a ter estado mais vezes no Japão, que se tornou o principal cliente da nova e gigantesca mina do melhor minério de ferro do planeta, o de Carajás.
Pessoa de notável fluência e perspicácia, Eliezer se fortaleceu como um homem de gabinete, mas com uma sólida experiência de campo (fez carreira na Vale, na qual ingressou em 1949, como engenheiro competentíssimo). Atuava com maestria nos bastidores. Cometeu um grave erro, talvez explicável pela reprimida vaidade, que sempre aflora: comandou a Secretaria de Assuntos Estratégicos de Collor. Mas ainda conseguiu sair a tempo de não manchar definitivamente sua biografia e voltar à sombra característica das eminências pardas.
Como tal, faz muito e aparece pouco. Por essas características, seu filho dileto seria apenas o seu "laranja"? Sempre tive essa dúvida. A imprensa nacional nunca me ajudou a esclarecê-la. Nas páginas dos jornais, Eike se me revelava um homem impetuoso, aplicado, inteligente, mas que decidira fazer uma aposta de risco em sua paixão, Luma de Oliveira. Administrá-la devia ser incomparavelmente mais difícil e desgastante do que os negócios, que foram se expandindo no setor de domínio do pai: a mineração.
Deixo a seara do amor (e do desamor) com a grande imprensa. Mesmo que seja um assunto menor, o que profissionalmente me interessa é a parceria pai-e-filho na mineração - especificamente, a mineração amazônica. O pai, como várias vezes escrevi aqui, foi o responsável pelo deslocamento da influência americana na Amazônia e sua substituição pelo parceiro asiático. Primeiro o Japão e agora, em escala crescente, a China (convém começar a estudar ideogramas para não ficar para trás). Uma jogada de mestre, que nem jornalistas e nem acadêmicos se interessaram até agora em reconstituir, ao menos com rigor maior do que a cobertura dispensada às estripulias de dona Luma (que, agora, bem podia ser rebatizada de Lume).
Se no capítulo de Carajás Eliezer Baptista teve que agir atrás da poderosa CVRD, com o filho (ou através dele) pôde se movimentar como um empresário autônomo. Coerentemente, procurou uma área de rentabilidade maior e mais imediata: o ouro. Desde o ano passado Eike comanda a implantação de um novo projeto no Amapá, retomando a extração de ouro no vale do Araguari. Essa é a região na qual, durante quase meio século, a Icomi (associação de Augusto Trajano Antunes com a multinacional americana Bethlehem Steel) lavrou manganês.
O resultado da mineração de manganês não foi nada positivo para o Amapá. O governador Valdez Góes (do PDT) diz estar consciente desse passado amargo, embora nem fosse nascido quando a Icomi se estabeleceu no Estado, na segunda metade da década de 40. Mas ele garante que a Mineração Amapari não seguirá um modelo de enclave. Não só porque seu governo não deixará que isso aconteça: esse propósito não estaria nas intenções da própria empresa.
Substituindo a maior mineradora de ouro do mundo, a AngloGold, que não deu certo, no controle do empreendimento, a Amapari pretende investir 300 milhões de reais na primeira etapa do projeto (para retirar 25 toneladas do metal, a uma média anual de 4,5 toneladas), criando 300 empregos diretos e 600 indiretos nos municípios de Serra do Navio e Pedra Branca do Amapari (onde está localizada a jazida). Os números soam como música para os habitantes da região, que desde 1994 acompanhavam com ansiedade a movimentação da Anglo.
Mas para não ser mais uma frustração, na longa tradição amapaense, de só ficar com as sobras de garimpos e lavras de ouro, uma cláusula do contrato de concessão da Amapari, obrigando a mineradora a destinar anualmente 1% de seu lucro bruto ou o limite de até R$ 550 mil (o valor que for maior) para investimentos sociais nos dois municípios. Isto significa que a empresa acredita poder conseguir, na pior das hipóteses, lucro bruto de R$ 50 milhões ao ano (um sexto do investimento total).
Para ela, o negócio seria maravilhoso, sem os atropelos que uma estrangeira como a Gold enfrentou por estar à testa do negócio (representada agora por uma subsidiária, a Itajobi). Mas o avanço para a população seria proporcional ou a cláusula apenas atualiza as regras da mineração da Icomi, que também estava sujeita a descontos para investimento e custos sociais? Da Icomi, para a Amapari, o elo de sucessão é a própria qualificação da mão-de-obra, que se adestrou na lavra de manganês e agora vai rapidamente poder ser absorvida pela mineração do ouro, sem maiores gastos por parte da nova empresa.
A extração do ouro deverá proporcionar royalties de R$ 38 milhões ao Amapá, R$ 25 milhões a serem divididos entre os dois municípios e R$ 13 milhões para o Estado, mais R$ 600 mil anuais em ISS (o imposto sobre serviços). Será realmente um enorme salto tributário, sobretudo para Serra do Navio e Pedra Branca. Mas pode ser apenas mais uma fonte de problemas e desajustes se as administrações públicas não estiverem preparadas para enfrentar os problemas que virão juntamente com a nova frente de mineração, que pode ser intensa mas é efêmera.
Talvez possa parecer - a pessoas desatentas - que as exigências feitas atualmente signifiquem um passo adiante em relação ao passado. Quem se der ao trabalho de confrontar os dois tempos da exploração mineral, porém, vai ficar em dúvida se está mesmo havendo progresso. Se é inegável o balanço negativo do meio século de Icomi, em função das condições estabelecidas no contrato de concessão de lavra, não é menos evidente que a administração pública local não conseguiu tirar proveito de algumas das cláusulas firmadas na relação. Não só por despreparo do próprio governo, como pelo desequilíbrio de forças em relação à empresa, que era muito mais forte.
Só assim se entende o reduzido efeito social de exigências feitas à Icomi, como pagar royalty (recolhido trimestralmente) de 4% sobre o valor do minério colocado no porto de embarque, mais 1% adicional ou 20% sobre o lucro líquido em investimentos (a opção preferida). Em tese, os recursos poderiam formar um significativo fundo de desenvolvimento. Na prática, não alcançaram essa função, seja porque acabaram desviando-se de sua finalidade ou porque os mecanismos de controle das contas (e das operações) eram débeis por parte do governo.
Depois da Icomi, o Amapá ficou com legados bem piores, como o da Mineração Novo Astro e o da Yokio Yoshidomi, em matéria de ouro. Essas experiências evitarão a repetição dos erros com a Amapari? Esta é a questão. Além de ter que dar conta dos seus impactos sociais negativos, a empresa precisa ser seriamente monitorada porque vai utilizar cianeto na purificação do ouro. Ela diz que o método de lixiviação, fazendo com que o ouro será colocado em pilhas e resfriado, eliminará o risco de descarte de cianeto no meio ambiente. Se for realmente assim, tudo bem. Mas precisa ser exatamente assim - e aí é que entra o governo, se estiver disposto e com capacidade para desempenhar o seu papel de fiscalização.
No sertão do Amapá, a história é de envergadura muito diferente da novela que exerce seu fascínio na fímbria litorânea do Rio de Janeiro. E é este outro Eike Baptista, ignorado pela grande imprensa nacional, que interessa.
Lúcio Flávio Pinto é jornalista.
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